terça-feira, 10 de agosto de 2010

Preferiram morrer

A notícia era curta e vinha espremida no meio das outras. As outras eu esqueci. Mas esta não me sai da cabeça. Relata o suicídio de crianças em Hong Kong. Uma menina de 5 anos, um menino de 10, um de 11 e um de 14, todos eles saltando dos apartamentos onde moravam. Com estes quatro, elevasse a 13 o número de crianças que se suicidaram desde o início das aulas, em setembro do ano passado. Não se trata de um fenômeno novo, pois naquele ano foram 17 os estudantes que se mataram. Coisa semelhante vem acontecendo no Japão. Albert Camus, no seu livro O Mito de Sísifo, declara que o suicídio é a única questão filosófica verdadeira, pois ele tem a ver com o dilema com que todos temos de nos defrontar: se a vida vale ou não a pena ser vivida. Algumas pessoas são de opinião de que o suicídio só pode ser compreendido como resultado da loucura. Não concordo. Acho que, com muita freqüência, é para fugir da loucura que as pessoas se matam. Eu tendo a concordar com Hermann Hesse, quando ele afirma ser de opinião que a pessoa que se mata usa, para se matar, o mesmo direito que têm os outros de morrer de morte natural. Lembro-me de muitos suicidas, ele diz, e considero sua morte mais natural e sensata do que de outros que não se suicidaram. Lembro-me de um casal que conheci e aprendi a respeitar, quando estive pela primeira vez nos Estados Unidos. Ele era um homem brilhante, de vitalidade fulgurante e palavra fácil, presidente de uma tradicional instituição de ensino teológico. Já velho teve um derrame, ficou praticamente paralisado, perdeu a capacidade de falar, que era toda a sua alegria, e os dois se descobriram condenados a uma solidão sem remédio. Sem nenhuma esperança que lhes desse razões para viver, o suicídio lhe apareceu como a única alternativa para aquela situação sem saída. Arthur Koestler e sua mulher fizeram a mesma coisa. Por vezes é a dor sem sentido que torna a vida insuportável e é freqüente que os torturados apelem para o suicídio como a única forma de fugir à crueldade do torturador. Outros – e eu penso que os poetas Maiakovski e Ana Cristina César se enquadram neste caso – se suicidaram por não vislumbrar esperanças de escapar das câmaras de tortura que existiam dentro de sua própria alma. O que leva ao suicídio não é o sofrimento físico. Nós temos uma capacidade quase infinita de suportar a dor, desde que haja esperança. Enquanto existe esperança, a vida luta. Até mesmo se diz que a esperança é a última que morre. Mas o mais certo seria dizer: a penúltima. Porque a sua morte é o prenúncio da última morte, a morte daquele que conclui que não há mais razões para viver. Quando morrem as razões para viver, entram em cena as razões para morrer. Concordo com Camus, quando ele diz que um ato como este é preparado no silêncio do coração, como uma grande obra de arte. O ato suicida não é somente um ato físico que põe fim à vida. O futuro suicida imagina os outros, os seus olhares, sentimentos e pensamentos, diante do seu corpo morto. O seu ato é um gesto que deseja ser compreendido, uma palavra que deseja ser ouvida. Aquelas crianças, que experiência terrível as teria levado a concluir, após uns poucos anos de vida, que era preferível morrer? Elas não estavam doentes e não passavam por privações físicas: viviam num paraíso de progresso, um dos tigres asiáticos, aqueles países que se têm destacado pela capacidade de produzir riqueza. Eram estudantes. Freqüentavam as escolas. Nas escolas elas eram preparadas para entrar neste fabuloso mundo de ciência, tecnologia, trabalho e riqueza... E, no entanto, isso não lhes deu razões para viver. Talvez, ao contrário, tenha sido este mesmo mundo, representado pelas escolas, que lhes tenha dado razões para morrer. A notícia afirma que seu suicídio estava ligado às pressões insuportáveis que as escolas lhes impunham, no sentido do desempenho intelectual. Pois é com isto que o progresso é feito. O progresso é feito com competição impiedosa. Não há nele lugar para aqueles que são sensíveis aos valores suaves. Apenas os implacáveis sobrevivem. Acho que aquelas crianças concluíram que não valia a pena viver num mundo como este. Suicidaram-se por não suportar a violência que a produção da riqueza exige. No mundo da riqueza, toda criança deve ser destruída a fim de ser transformada numa unidade de produção econômica. E é para isto que são mandadas às escolas. As plantas mais delicadas são as primeiras a morrer. Sobrevivem os cactus, os espinhos, as espécies selvagens, as parasitas ferozes... Mas isso aquelas crianças não queriam ser... Se lhes tivesse sido dado uma chance de viver é possível que se tivessem transformado em poetas... O seu último gesto, na verdade, foi um poema sem palavras. Lançaram-se no vazio, quiseram transformar-se em pássaros......e seguindo a canção...”


Rubem Alves – Teologia do cotidiano

3 comentários:

  1. Pura verdade! Valeu Mano Tchelo!

    ResponderExcluir
  2. acho o suicídio uma das coisas mais curiosas e intrigantes. já estive perto de alguns corpos de pessoas que cometeram o ato e nao vejo como um ato de covardia como muitos falam, mas sim como algo corajoso até demais. claro que nao concordo com a prática. acho q essas pessoas nao colocaram Deus em primeiro lugar nas suas vidas, pq se tivessem feito isso veriam q o viver é Cristo!
    fico muito triste quando alguem se suicída, mas é mais triste ainda ver uma criança suicidar-se.
    deve ser um turbilhao de sentimentos, uma loucura, algo tão grande q a pessoa nao ve alternativa e esse se torna o unico refúgio. nao consigo nem imaginar o q acontece dentro das cabeças dessas pessoas, seus sentimentos.
    nossa, isso é muito triste. acho q só pode ser isso tudo msm q o rubem alves falou.
    pra mim, o culpado de tudo se resume em uma palavra que quer dizer mais q uma só coisa: capEtalismo

    ResponderExcluir
  3. Augusto Cury sempre fala que o suicida na verdade não quer se matar mas quer matar a sua dor. Concordo com ele nisso.
    Espero que de alguma forma, cada um de nós consiga compartilhar nossa vida com aqueles que tem tanta sede de viver e acabam se matando por não conseguir meios e recursos para simplesmente; viver!
    Beijão Lu e Alissa!

    ResponderExcluir

Related Posts with Thumbnails