quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Diário de um entregador de marmita



De todos lugares que já trabalhei, os que mais gostei foram dois: Entregar revista de bicicleta e o meu trampo atual: entregar marmita de moto. 

A sensação do primeiro dia de entrega foi indescritível. Eu e minha CG colorida, cortando o trânsito com uma pá de marmitex na bolsa, me sentindo um pouco "Jackson Five".

As onze horas da manhã começa a correria. É a dialética do entregador de marmita: O povo tem que comer e eu preciso ganhar minha grana pra pode comer.


Nas entregas eu conheço gente de todo tipo. A primeira entrega é pra funcionários de uma fábrica que nem olham pra comida. Eu deixo lá no balcão e eles continuam trabalhando sem parar. Eu lembro de um personagem, o seu Boneco, que dizia: “Eu não como pra viver, mas vivo pra comer”. Esses caras fazem diferente: Comem pra viver e vivem pra trabalhar.

Da zona sul vou pra zona norte (isso se minha cidade fosse dividida por zonas, mas as "zonas" que a dividem são de outros tipos) o cara que me recebe sempre diz a mesma coisa: "Eu ouvi o barulho da comida e a gente faz igual o gato, né? Quando ouve o barulho do rato a gente ataca". Trata-se de um senhor idoso e obeso muito gentil, que come pra viver e vive pra compartilhar com as pessoas suas alegorias. 

A próxima entrega é a mais curiosa. É pra uma senhora advogada que divide o espaço da sua casa com papéis e animais. São muitos animais... Ela sempre me dizia que quando ela não estivesse em casa, eu poderia deixar o marmitex no cantinho, perto do relógio de água. Achei que nunca precisaria, mas um certo dia, bati palma por muito tempo e ninguém saia. Não tive outra escolha. Abri o portão da área e deixei a marmita no cantinho que ela falou. O problema é que sou muito atrapalhado. Quando fui abrir a bolsa, ela escorregou e o marmitex abriu. O creme de milho e um pedaço do frango ficou pra fora da marmita. Eu tentei fechar mas não tinha como. Como dizem os mais velhos: “Tem coisa que depois de ser aberta não fecha mais”. Não tive outra alternativa senão deixar ali mesmo. Quando eu estava saindo da área da casa, meu celular tocou. Enquanto eu estava no telefone, só ouvi um miado de gato. Olhei pra trás e deu tempo de ver o gato, que tinha apenas um olho, mandando ver o pedaço de frango. Eu não pude fazer nada. Liguei minha CGzinha e sai no pinote! 

Nos outros dias achei que aquela senhora iria me xingar pelo que aconteceu, mas ela nunca disse nada. Fiquei na dúvida: Será que ela divide a comida com os animais ou ela compra os marmitex pra eles comerem? Vai saber? Seja como for, meu trabalho ta feito!

Minha próxima entrega é pra gente educada. Já chegaram até a me convidar pra comer com eles. Embora a fome falasse alto, claro que eu não aceitei. Tinha mais entregas pra fazer.

Chego numa casa de gente "chique", quer dizer, gente que se acha. Eles nem olham direito pra minha cara, a não ser quando é pra reclamar. Nem esquento a cabeça, apenas sigo em frente! Agora to na zona Leste. As casas são parecidas. Gente educada, gente simples, gente preguiçosa que não quer cozinhar, gente que não sabe cozinhar. Tem de tudo! 

Hoje eu tinha uma entrega em uma casa que ainda não conhecia. A mulher tinha nome de cantora. Quando eu a vi, não pude resistir, tive que cantar pra ela: "É isso aí...". Ela não entendeu nada, mas ficou toda sorridente. Talvez não fez ligação da música com o nome dela. A Ana Carolina achou que era uma cantada, mas não era. Era minha cantoria, coisa bem diferente! Talvez seja uma mulher carente, não sei...

Falando em carente, eis uma mulher carente! Ela mora no centro, e é uma das minhas últimas entregas. Trata-se de uma senhora muito gorda e com olhar triste. Toda vez que chego ela diz: "Eu falei pra eles capricharem na comida, mas olha aí. Mandaram pouco... Desse jeito não da mais @amp;amp;8%#." E não da mais mesmo. No outro dia pede marmita novamente. Acho que ela quer dizer que não da mais pra ficar sem comer tanto, só pode. Também desconfio que o vínculo dela não é tanto com a comida, mas o entregar, ou seja, alguém pra reclamar, ou conversar (dependendo da maneira que se olhe).

Minha última entrega é pro cara mais gente fina de todos. Parece um caiçara. É dono de um bar feito de taquara, madeira, palha e tijolo. Coisa doida! Ele ta sempre de bermuda e chinelo e diz a mesma coisa: "Hoje é a última vez que peço marmita. To indo embora pra outro estado. Quero ficar de boa lá". No outro dia, lá estamos novamente ouvindo a mesma coisa e entregando marmita. 

Ele nunca vai embora. Acho que na verdade, ele só procura um lugar pra si. Não um lugar físico, mas um lugar de encontro consigo mesmo. Acho que todos eles precisam. Mesmo eu que tanto corro, e termino minhas entregas na zona oeste, também preciso. Preciso do dinheiro, comida e pessoas pra conversar, pra dar sentido a tudo isso. Assim, trabalhamos pra comer, comemos pra viver e vivemos pra amar. Amar a vida e as pessoas que nela estão. E tudo isso, assim como na ceia de Jesus, gira em torno da comida. 

É o partilhar do pão... ou da marmita...


Tchelo

5 comentários:

  1. Quanta gente no mesmo universo e ao mesmo tempo quantos universos diferentes dentro de cada um, Tchelo. Legal o que vc disse sobre esse senhor, "o mais gente fina de todos", me fez lembrar da fala naquela música do Teatro Mágico(se não me engano se chama "Tudo é uma coisa só") em que o Anitelli diz: "Que um se encontre no outro e o outro no um...". Sorte deles ter a chance de encontrar você, acho que de alguma forma eles podem sentir que, mais do que a comida, importa a alegria vivida e compartilhada, como na vez que vc cantou pra Ana Carolina. Sabia que aquele moço que vendia pipoca lá na porta do teatro do Sesi(não sei se vc vai lembrar dele), sempre cantava: "Ando por aí tentando te encontrar...", pra mim?(rs...)Era pq ele achava minha voz(grossa) parecida. Uma vez cheguei super-atrasada, tinha ido guardar minha bike na secretaria e qndo voltei tinham acabado de fechar o portão, aí ele disse:"Ah, não acredito que vcs não vão deixar a Ana Carolina entrar!" Aí deixaram! ;D legal né?!

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  2. Pois é Nádia! Muito bom conhecer tanta gente. Legal o que você disse sobre "tanta gente no mesmo universo e ao mesmo tempo quantos universos diferentes dentro de cada um"...

    Saudade do tempo de teatro no Sesi...

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  3. Olá, tudo bem, gostei muito do seu trbalho e do relacionamento que tem com os cliente, gostaria de aproveitar esse espaço para tirar uma dúvida qto ao seu trabalho e talvez assim vc possa me ajudar, estava pesquisando sobre serviço de motoboy e acabei lendo sua história, estou abrindo um delivery de marmitex e minhas encomendas estão aumentando mas sem roteiro definido, como funciona seu trabalho, pode me indicar alguem? Me dar idéia de valor por serviço prestados? Não tenho uma clientela grande pois estou no mercado a 1 mês e os clientes estão se pulverizando a cada dia, e isso esta atrapalhando o restante da operação pensei em algum serviço no horario das 11:30h as 14:00 +/- - e repito ainda estou com poucos clientes se puder me orientar ficarei muito grata. Abraço.

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